terça-feira, 10 de novembro de 2009

"IMPÉRIOS - AS POSSIBILIDADES ENTRE O REAL E O IMAGINADO"

« Equilíbrios, precariedades e influências:
portugueses e africanos entre Impérios reais e imaginados».



Apresentemos alguns problemas epistemológicos. Tão simples e tão complexos quanto a própria vida. Mas apenas porque eles são assim tão estranhos, em sua natureza, deveremos deles renunciar? Sobre que escreveremos então quando elaboramos uma construção histórica? A dificuldade de compreensão das coisas expressa-se em níveis diferentes. Os mesmos que correspondem ao cruzamento de universos individualizados.
Quando dois mundos se encontram. No momento sempre mais longo em que culturas primordialmente individualizadas se afrontam, seduzem, transformam. São duas mundividências, por vezes tão distintas, que é difícil imaginar o que provoca a observação quanto às formas diferentes de encarar a vida. Noções de tempo, espaço, moral, costumes, chocam entre si; provocam mudanças irreversíveis e geram novas criações insuspeitadas e desconhecidas. Quer no processo de construção dessas novas realidades, quer no seu reconhecimento, do exterior, os próprios padrões de análise se alteram, transformam-se, repensam-se, atónitos, ante o espectáculo da vida. As categorias do pensamento sofrem mutações que são dificilmente explicáveis através dos expedientes restritos da racionalidade. Afinal as racionalidades são, por sua vez, outras tantas criações laboriosas e maturadas de cada meio e de cada mundividência específica. Construções sempre dotadas de uma riqueza original. Plenas de uma riqueza inultrapassável mas que encerra - como componente fundamental do seu código - a capacidade de evoluir para outras formas, nem mais ricas, nem mais pobres, apenas outras.
Entendamo-nos. Não se trata de defender relativismos. Trata-se de reconhecer, tão somente, a dinâmica produzida pelo encontro/confronto de diferentes concepções do mundo, da natureza e da vida. Tais concepções, todas básica e originalmente legítimas, reflectem formas diversas de encarar o domínio da natureza, as estratégias de sobrevivência, as construções diferentes de um simultaneamente múltiplo e uno universo de cultura. São, por isso, diferentes formas de uma mesma humanidade. Facetas diversas do humano plasmadas em procedimentos e soluções específicas.
Tal não deve ser entendido como significando uma qualquer tentativa de legitimação, a qualquer preço, de todas e quaisquer práticas, nomeadamente as que colidem com preceitos básicos daquilo que se entende pelo conjunto fundante das noções próprias do humano. Não é um problema de relativismo. É antes um problema de uma mesma unidade nas suas facetas aparentemente díspares.
Se tendemos a analisar frontalmente noções como liberdade, sexo, poder, não raro encontramos a sua projecção e materialidade sob realidades e procedimentos tão distintos e diversos que difícil se afigura o julgamento da sua natureza em padrões estritos de uma dada mundividência, de uma dada forma de encarar o mundo, de um pensamento único. Ainda assim, ou sobretudo por isso, o resultado não corresponde a mais que um reconhecimento de dimensões diversas de uma mesma humanidade.
Como poderia o Estado compreender a vastidão do fenómeno. Ele a quem competia plasmar em norma e intenção político-administrativa a dominação pretendida. O Estado gere com dificuldade a diversidade do real. De um lado despachos, diplomas régios e legislação vária; do outro, o mundo real - Climas, geografias, moralidades. Após viagens de uma imensidão feita de tempo, perigo e afastamento. Existências de uma espessura dificilmente compreensível. Mas que enformam as análises e provam adaptações a que se deve moldar a racionalidade que ensaia a sua compreensão. As diferentes formas de existência assumem características próprias forjadas ao longo do tempo nesses espaços diferentes. As racionalidades, de fora, apenas subsistem nos novos meios mediante adaptações e ajustamentos em todo um processo natural ou produto de uma maior elaboração que cria inovadoras possibilidades de existir.
Os europeus conhecem, na costa oriental de África, as especificidades de uma cultura bantu que, modificando-se nos contactos ao longo do tempo consegue, contudo, sempre resistir e subsistir sob diversas formas; ou experimentam o elemento indiano que conserva características grupais mas que não permaneceu imune a uma certa cafrealização; ou são trespassados pelo mundo negro da feitiçaria e do ritual que provoca reminiscências de um outro tempo, de uma outra história mais remota, onde se pode apenas imaginar o que seria o despojamento de outras influências exteriores.
As religiões observam-se mutuamente. O catolicismo é forçado a viver nas fronteiras do islamismo, ambos caldeados pela base de um mundo pleno de elementos cafreais. O resultado é, por um lado, o da simbologia das diferenças: as que vivem nas igrejas católicas, nas mesquitas muçulmanas, nos cultos animistas e espirituais e assumem, por outro lado, novas formas de catolicismo, de islamismo ou de ritual gentio, todas dotadas de características próprias em resultado do convívio constante e da interpenetração que mora, inevitável, no espírito e na carne. E tão próprias são essas novas realidades que conferem forma e côr ao Índico que nada resultante do seu contacto será igual. Catolicismo e islamismo revestem-se, pois, de características formalmente tão inequívocas em África que em muito diferem daquelas que lhes poderemos identificar nos locais de que são originárias ou em muitas daquelas que são próprias da sua génese ou que encontramos em locais e regiões por onde irradiaram. Em África, o elemento bantu tudo transforma, tudo esbate, tudo relativiza. Templos, cerimónias, ritos, vestuário, orações entre muitos outros aspectos, conhecem formas diferentes e originais; criam-se e recriam-se. Práticas vividas naturalmente e que representam outras formas de piedade, devoção, fé. Mesmo quando se quebram ou atropelam certos tabus e dogmas eles lá continuam a figurar, nos imaginários, como reduto e recorrência simbólica que confere todo um sentido a uma prática que nem por os respeitar os deixou de adaptar às suas exigências.
As instituições adaptam-se, de igual modo, porque os homens têm que procurar soluções diversas. Não porque o façam a maior parte das vezes de forma intencional, mas porque a isso são obrigados pela força da extensão dos campos da África oriental ou pela perenidade imperturbável da água que corre ao sabor do vento das monções. O sucesso da colonização depende, por isso, em grande medida, dos expedientes utilizados pelos colonizadores para, maioritariamente de forma informal, penetrarem o universo distinto em que se movem e em que procuram satisfazer os seus interesses, quaisquer que eles sejam. Ainda aqui façamos um parêntesis para assinalar que estes interesses sofrem, muitas vezes, alterações de monta e não são já, perante o correr inefável do tempo, os mesmos que animaram o seu movimento inicial. As intenções, não raro mudam. As lealdades originais frequentemente se desvanecem. Lá longe, o Estado impotente, que ficou para trás, não compreende inteiramente essas alterações e quebras, essas mudanças que muitos dos seus agentes imprimem a uma política traçada tão geometricamente quanto possível. Uma incompreensão fundamental que resulta do facto de essa mesma política haver permanecido como o resultado de uma construção originária que perdeu, entretanto, boa parte do sentido. Conceitos como nacionalismo, sentido de Estado, fidelidade e lealdade, instrumentos de uma política, entre muitos outros, não desaparecem completamente. Apenas se alteram. Inevitavelmente. Ante o confronto, por vezes conflituoso, por vezes afável, de concepções de um mesmo viver. Miscigenado. Misto.
Nas peles, na língua, na cultura, nas formas de organização, nas necessidades de adaptação da diplomacia, nas formas de domínio que são a maior parte das vezes, mais que o resultado da guerra, ou para além do resultado dela, as cedências e compromissos expressas no quotidiano dos seus protagonistas. Também na força considerável que deve ser reconhecida a uma forma de colonização, porventura a mais eficaz, que foi levada a cabo por rostos anónimos de comerciantes, aventureiros, colonos e colonizados espalhados ao longo de extensões de uma vastidão imensa. Gente isolada da sua cultura original que encontrou, como soube ou pôde, as formas de convívio mais adequadas ou permitidas. Entrou, desse modo, no mundo de cunho matriarcal, no conhecimento dos ritos, na vivência da poligamia, noutras formas e estruturas organizacionais, no reconhecimento pragmático do «humano outro».
Não necessita de ser geneticamente misto o novo miscigenado cultural. O conhecimento dos outros significa aceder a um mundo de que já se não volta igual. A beleza, a violência, a vida e a morte, a liberdade experimentada não permitem o retorno incólume, mesmo que esse retorno espacial se verifique.
Se falamos frequentemente da influência do “colonizador” sobre o “colonizado”, é por vezes difícil distinguir quem coloniza quem. E é devastador o efeito que, em muitos casos, a carga cultural do “colonizado” opera sobre quem o quereria colonizar.
Mundos diferentes contemplam-se, permanentemente, através do espanto causado pela diferença ou mesmo pelo antagonismo das concepções. Mas necessidades como o comércio, o poder, a sobrevivência, o prazer, entre muitas outras, impõem contactos entre culturas que natural e inequivocamente transformam os costumes, as formas de vida, construindo novas tradições sobre outras mais antigas que, por sua vez, jamais terão existido em tal estado que pudesse jamais haver sido considerado puro.
Salientemos, neste processo, o valor da incompreensão. Ela é real. Pode gerar o bloqueio mas comporta sempre, de igual modo, uma certa desestruturação. Constata-se a existência de formas diversas de ser, talvez absurdas para quem com elas se defronta mas tão reais quanto quaisquer outras. O papel modificador desse desconcerto é difícil de avaliar. Mas nem por isso pode ser menosprezado. Os valores do mundo cristão na sua hierarquia lógica defrontam outras construções em que o poder, a religião o sexo, a vida são experimentados de forma diferente. É certo que as reacções ao estranho são variadas: ora repulsivas, desvalorizadoras, violentas, ora compreensivas, interessadas, fascinadas. O controlo da violência é uma aprendizagem constante.
Assinalemos também o factor tempo. Há os que fazem a longínqua viagem rumo aos territórios que seriam posteriormente enquadrados numa mesma forma apelidada Moçambique, ou numa outra denominada Angola, realidades como a Guiné, Cabo Verde, S. Tomé, entre outras, em missões de duração limitada no tempo - governadores, militares, agentes do Estado partem com a convicção de voltar dentro de um dado período de tempo; há os que partem em variáveis missões religiosas sem certeza quanto ao regresso; temos ainda os que partem em busca de dinheiro e que se vêem transformados em aventureiros por necessidade. É toda uma gama de diferentes situações que permite, à partida, prever diferentes formas de adaptação ao mundo que irão encontrar. As contingências do clima, do ambiente cultural diverso, das dificuldades de sobrevivência, da doença, da alimentação, entre outras, a todos afectará. Mas em grau diverso. Transportam consigo uma mesma base cultural mas, ainda assim, diversificada em função da preparação escolar, do grau de cultura, da religiosidade, da experiência pessoal de cada um.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

"Educação no seu tempo e neste espaço", por Casimiro Rodrigues

Dos projectos de cada tempo aos projectos que nunca o são.

por Casimiro Rodrigues


A Constituição da República Portuguesa aponta, nos nossos dias, algumas das que devem ser as linhas orientadoras da educação e cultura em Portugal. Nos seus vários capítulos é sublinhado o princípio da democratização da actividade educativa devendo caber ao Estado a implementação de todas as medidas necessárias para que ela se assuma como um direito de todos os cidadãos traduzindo-se numa elevação cultural da população e numa integração mais activa entre as duas realidades presentes: a Escola, por um lado, e o meio que a rodeia, por outro. É importante que as escolas sejam um factor dinamizador da vida das regiões. Claro que o orçamento atribuído ao ensino é um elemento fundamental na prossecução dos objectivos que a Constituição assinala. Começando pela igualdade dos cidadãos no acesso à Escola pressupondo desde logo, o estabelecimento de uma rede escolar adequada às necessidades do País. A criação de condições que permitam que os alunos não sejam descriminados perante a Escola, em função das suas condições sócio-económicas que determinam muitas vezes, à partida, desigualdades nas perspectivas de sucesso escolar. Na supressão de disparidades entre o meio rural e urbano. Fornecendo uma formação de base equivalente a todos os indivíduos e negando à Escola o mero papel de reprodutora dos papéis sociais. Fomentando o respeito pela diversidade regional através da adequação dos programas aos problemas e necessidades específicas de cada região. Também desenvolvendo o ensino técnico-profissional. Fomentando o ensino especial. Não esquecendo o ensino de adultos. Estes são alguns dos deveres do Estado, e das Regiões, no campo da educação e cultura.O seu cumprimento acarretaria uma elevação do nível cultural da população e contribuiria para o desenvolvimento do País, para o qual a educação é consensualmente considerada um «sector chave».
Do passado ao presente, a evolução educativa desenrola-se segundo pressupostos que se articulam com as condições e objectivos da sociedade em cada momento – dos anseios e preocupações de cada época; da economia, possibilidades e condições materiais; das flutuações políticas; do universo cultural e mental. Iniciado há alguns anos, o projecto "Elementos para a História da Educação na Região Autónoma dos Açores", no âmbito do Departamento de Ciências da Educação, na Universidade dos Açores, tem em vista a recolha, sistematização e descrição de testemunhos na área de História da Educação que permitam um conhecimento do passado e uma consciencialização para a importância da inventariação dos principais aspectos que marcaram a evolução educativa açoriana. À semelhança do que vem acontecendo a nível nacional e internacional, muitas regiões despertam para a importância e significado do levantamento, tratamento e síntese dos dados disponíveis, que possibilitem um esclarecimento sobre a evolução do panorama educativo. Tal levantamento permite a consideração e estudo de fontes que, muitas vezes, não mereceram a devida atenção quando não terão sido mesmo totalmente ignoradas.
A Educação tem uma História. Nessa História cruzam-se muitos aspectos que permitem compreender o papel da Escola na Sociedade - as suas influências mútuas, as relações recíprocas. A história da educação fornece-nos bases para a compreensão dos fundamentos históricos da actividade educativa. É o que se pretende neste caso, incidindo numa região com especificidades bem marcadas e singularidades que derivam da sua própria situação geográfica e da sua integração nos espaços mais vastos. Importa que se apreendam criticamente as características, objectivos e finalidades da educação ao longo da História desta Região, hoje Autónoma. Deste modo, será possível a elaboração de uma análise que assente no estudo reflectido e fundamentado de ideias, métodos e técnicas, em matéria de educação. Mas também de que forma essas ideias foram elaboradas, reformuladas e aplicadas na região dos Açores.
Para esse efeito, é fundamental o conhecimento de diversas doutrinas pedagógicas e sua articulação com a sociedade açoriana ao longo do tempo descortinando a articulação entre "educação", "escola" e "doutrinas pedagógicas", por um lado e, por outro, as características das ilhas açorianas e do seu viver social em cada tempo determinado. Trata-se, afinal, de encarar a educação açoriana como um processo dinâmico em permanente construção e adequação às realidades próprias de cada época. Através da recuperação da memória histórica da educação açoriana percorrem-se os caminhos do conhecimento do conceito de "criança" ao longo do tempo; da função da educação em cada época, da diversidade própria da educação em cada espaço e que constitui o conjunto do território açoriano; da evolução dinâmica de técnicas, ideias, e sua correspondente e possível aplicação. A generalidade dos testemunhos da História da Educação - como livros, manuais e outras fontes, permitem esclarecer a natureza das várias práticas pedagógicas, os arquétipos criados na escola e os conteúdos materializados na construção curricular, nas suas várias disciplinas, nas diversas temáticas abordadas. As ideias pedagógicas e a sua circulação, adopção e adaptabilidade mostram-nos, de forma comparada, as diferentes práticas pedagógicas nas diferentes ilhas e também o grau de abertura a novas ideias, a originalidade de algumas soluções, a produção teórica local e as especificidades da realidade regional.
Este projecto é fundamental para a história local. Pela contribuição que pode proporcionar para a docência disponibilizando informação sistematizada sobre a actividade dos próprios professores. Para que os projectos educativos sejam bem sucedidos é necessário atender às solicitações da comunidade que envolve a escola, às características do meio e às particularidades regionais. O estudo da história local - e particularmente da história da educação - constitui um meio privilegiado para a concretização destedesiderato. O presente projecto contempla recolhas efectuadas pelos alunos (através de fichas/processos - textos, fotografias, etc.) nos seguintes domínios e áreas privilegiadas: 1 - Por «área disciplinar»; 2 - «Edifícios/Instituições» existentes e em funcionamento, desactivadas, em função diferente da original (Documentos sobre o estado da escola - relatórios, obras e reparações, etc.); 3 – «Objectos» (de aplicação pedagógica, mobiliário, de apoio ao ensino geral - ex.: quadros, ponteiros, materiais de escrita; apoio ao ensino da disciplina (Manuais; cadernos; Instrumentos - Elementos disciplinadores, Instrumentos de avaliação - exames, provas; Burocráticos/administrativos (diplomas; registos; fichas; regulamentos; actas; registos biográficos). Novas tecnologias (computadores, calculadoras); Ensino feminino/masculino; Educação Especial. 4 - «Entrevistas escritas com registo audio/ vídeo» (professores, alunos, funcionários, etc.). 5 - Por «disposição cronológica».
As Instituições escolares contam, cada uma à sua maneira, o papel que desempenham no sistema de ensino. Produzem-se discursos nem sempre convergentes e muitas vezes mesmo, diferenciados, quanto à concepção e papel da educação na sociedade. Analisam-se as práticas docentes, a situação do aluno, as arquitecturas curriculares, os manuais utilizados, os recursos pedagógicos existentes, a função de cada disciplina, os grandes objectivos do ensino sob cada sistema político. Aspectos como a «avaliação» ou a «disciplina» revelam-nos muito sobre a mentalidade de uma dada época - suas concepções, valores, mundividências. Aspectos que, afinal, tendo marcado o passado continuam a esconder-se em nós, sob a capa do agrado e sucesso ou do ressentimento e desvalorização, para o bem e para o mal (de forma tantas vezes perturbadora).

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

"África nos manuais escolares portugueses" - base de uma comunicação na Universidade dos Açores ao Encontro Sobre Manuais Escolares. 2000.

"Africa nos manuais escolares portugueses" 2000


Contexto do Encontro - Os estágios e a formação de professores.

- Estão presentes estagiários a quem desjo as maiores felicidades

- Saliento a importância da leitura atenta dos programas e da tentativa de visão global do programa

- Sem esta leitura, não há didáctica que resista.

- Queria salientar a importância formativa da História - disciplina insubstituível para a construção de uma nova visão de certas realidades - como é o caso de África.



Começando por referenciar as temáticas africanas, de forma muito sumária, verificamos que elas estão presentes, com intensidade variável, ao longo dos diversos anos de escolaridade:



5º e 6º anos História e Geografia de Portugal

No extenso programa dos 5º e 6º anos de História e Geografia de Portugal, África aparece no quadro do tema “Portugal nos séculos XV e XVI”. É tratada conjuntamente coma Ásia e América, devendo ser levantados os recursos naturais e as actividades económicas, a diversidade étnica e cultural das populações e ainda os colonos, mercadores e missionários. São abordados ainda conceitos como “colonização” e “etnia”.

Se o objectivo consiste em que os alunos “reconheçam diferenças nos modos de vida dos povos contactados pelos portugueses” e “desenvolvam atitudes de respeito para com povos de culturas diferentes”, a realidade é que o tema é tratado num quadro muito mais vasto e depende em larga medida do professor a capacidade de sensibilização dos educandos.

No tema “Portugal no século XVIII” é focado o “império colonial português nesse século”, “os movimentos da população” e o “tráfico de escravos”. Mais uma vez se espera que os discentes “desenvolvam atitudes de respeito para com povos de culturas diferentes”.

“A guerra colonial” integra o tema “Os anos da Ditadura” e constitui um curto bloco alinhado a par do Estado Novo. “A independência das colónias” integra o tema “O 25 de Abril e a Construção da Democracia”.



7º ano

No 7º ano de escolaridade aparecem algumas referências a África no tema 1. Das Sociedades Recolectoras às Primeiras Civilizações focando a passagem das primeiras para as segundas e analisando-se os processos de transição do nomadismo à sedentarização.



8º ano

No oitavo ano, África está integrada no tema 5. Expansão e mudança nos séculos XV e XVI, tratado nos conteúdos A abertura ao mundo e em Os portugueses e a África Negra. São abordados os conceitos de colonização, Império colonial, Tráfico de escravos, Aculturação.



9º ano

No 9º ano e com o tema 9. A Europa e o Mundo no limiar do século XX África regressa atrvés do conteúdo Hegemonia e declínio da influência europeia que trata conjuntamente de Imperialismo e colonialismo: a partilha do mundo, desdobrando-se nos conteúdos As exigências do crescimento industrial e a corrida às áreas de influência e de Os impérios coloniais europeus nos finais do século XIX. São retomados conceitos como Colonialismo e Racismo.

Mais tarde, no tema 10. Da grande depressão à segunda guerra mundial, no conteúdo Entre a ditadura e a democracia o colonialismo é tratado a par do corporativismo no quadro da edificação do Estado Novo. Finalmente, no tema 11. Do segundo após-guerra aos anos oitenta e no conteúdo O mundo saído da guerra é tratada A recusa da dominação europeia: os primeiros movimentos de independência. E em Portugal: do autoritarismo à democracia tratam-se Os movimentos de independência e a guerra colonial bem como a Independência das colónias e retorno de nacionais ligado ao Portugal Democrático.



10º ano

No 10º ano de escolaridade, África volta a surgir no contexto do tema 4. O Império português dispersão e heterogeneidade dos estabelecimentos coloniais: diáspora portuguesa. Neste bloco foca-se a rede de feitorias e fortalezas e o domínio português do Atlântico. No âmbito dos contactos entre povos e culturas é assinalada a superficialidade de contactos culturais com os povos da África Negra e o incremento progressivo do tráfico de escravos.



11º ano

No 11º ano e no âmbito do tema 6. A Dinâmica das economias-mundo nos séculos XVII e XIII: de Amesterdão a Londres, África, apenas é referida na sua condição de ultra-periferia constuindo o território em que se demandam matérias-primas.

Mais tarde, reaparece no contexto das rivalidades imperiais do século XIX, justificando-se a prtilha do continente africano pelos interesses europeus em confronto. Sem sequer fazer menção a que um dos elementos geradores da actual instabilidade africana repousa nesta divisão geométrica realizada pelos colonizadores sem consideração alguma pelas culturas e "nações" existentes - algumas com raízes milenares - existentes nesses locais.



12º ano

Finalmente, no 12º ano focam-se os movimentos nacionalistas: as forças anticoloniais das metrópoles e as vanguardas locais; as etapas e modalidades da descolonização e as conferências terceiro-mundistas e o não alinhamento. Ainda os bastiões brancos na África austral e a política ultramarina portuguesa e a guerra colonial.

Finalmente integrado no tema A queda dos últimos regimes autoritários na Europa Ocidental foca-se o impacto da descolonização portuguesa na África austral como consequência da instauração da democracia em Portugal.



Na análise do tema “África” constante dos programas de ensino e objecto de tratamento nos manuais escolares, para além de referência pontuais numa ou outra unidade didáctica, destaca-se o aparecimento de alguns grandes blocos, a saber:

primeiro - África no quadro da expansão portuguesa;

segundo - A corrida a África e os impérios coloniais;

terceiro - As guerras coloniais.

Os manuais escolares desenvolvem as varias temáticas através do recurso a texto expositivo; textos para exploração, gravuras, cronologias, mapas, etc.. Estes são aspectos em análise sempre que o grupo disciplinar de História opta por determinado livro a adoptar.

Trabalhando profissionalmente, há já muitos anos, com os manuais escolares entendemos como inegável a sua importância e o seu valor enquanto instrumento de trabalho.

Também é justo referir que ao longo deste quarto de século temos assistido a uma clara melhoria da qualidade dos manuais escolares a todos os níveis, desde a apresentação gráfica aos conteúdos seleccionados, passando por textos, mapas, fotografias e gravuras. Factos reforçados pela quantidade e diversidade de opções colocadas no mercado.

Apesar disto existem, em nosso entender, algumas omissões que exigem do profissional actualizado a adopção de cuidados redobrados.

Nomeadamente aquilo que me leva a esta intervenção - África nos manuais escolares.Aproveitamos este Encontro para apresentar alguns breves tópicos que nos parecem constituir motivo de reflexão:


1. O espaço

Geografia (acetatos com mapas de África que costumam ser mostrados).

Um problema que desde logo se põe quando falamos de “África” nos manuais escolares é o da percepção do espaço. A imensidão do continente africano é uma realidade que se transmite aos alunos com alguma dificuldade. Trata-se mesmo de um aspecto que, para muitos de nós é de difícil apreensão.

Este facto ressalta a importância do que chamamos “exercícios com o espaço”. Por exemplo através do uso de mapas à escala para permitir aos alunos uma relativização do espaço. No caso dos nossos alunos, a título exemplificativo, pode ser usado um recorte de Portugal ou do arquipélago, sobre um mapa, proporcional, de África. Um exercício tão simples quanto este permite uma melhor percepção da relatividade dos espaços em presença.

Muitos manuais apresentam mapas muito parciais de África, isolando uma ou outra região do seu contexto e não permitindo a compreensão clara da extensão africana.

África representa ainda uma outra realidade - climas diferentes, ritmos distintos, outros mundos. Sem a consideração destes aspectos é difícil compreender a natureza das tentativas de marcar presença próprias dos portugueses.

Esta percepção do espaço varia, quanto às dificuldades que coloca em função do nível etário dos alunos mas o recurso, único e exclusivo, aos mapas constantes do manual é insuficiente.

2. O peso de África na história portuguesa.

Em períodos cruciais da história nacional, e nomeadamente em períodos não muito longínquos, África revela uma influência mais ou menos directa e surpreendentemente poderosa sobre a história interna nacional (ainda recentemente disso tivemos provas com algumas declarações envolvendo políticos angolanos e portugueses e correspondentes repercussões internas em Portugal).

Este aspecto, uma espécie de permanência não pode ser compreendido, na sua actualidade e no esboço de um relacionamento futuro, sem uma interiorização das vicissitudes que rodearam o relacionamento entre europeus e africanos e, em particular, entre os portugueses e o conjunto de territórios em que a presença portuguesa se verificou com maior ou menor intensidade.

Às referencias programáticas, já de si, muitas vezes excessivamente curtas, correspondem os manuais escolares com informações muito sintéticas e esquemáticas que, a maior parte das vezes, dificilmente podem suscitar uma verdadeira reflexão.

Em suma, as informações esquemáticas que enformam os manuais escolares resultam demasiado superficiais e algo abstractas e não permitem, muitas vezes, a conveniente interiorização da verdadeira influência/participação de África na nossa própria identidade. África é um interveniente um pouco esquecido da nossa História.

Nas visões que nos surgem quanto a África aparecem, frequentemente as consequências do que foi um contacto estreito - desse peso da História mais recente. Assim, ora nos apresentam visões marcadamente influenciadas por ideias próprias de um passado colonial e marcadas por toda uma ideologia correspondente; ora assistimos, por outro lado, a autênticas vagas de remorso e auto-flagelação. Mas o importante, nos nossos dias, é encontrar o caminho de uma libertação responsável do peso do passado. Encontrar este caminho é uma das formas eficazes de cumprir aquele que é um dos objectivos primeiros de todos os programas de História - fomentar nos alunos a consciência da cidadania. Trata-se de construir o presente éntre países soberanos com um passado histórico comum.


3. A necessidade de reavaliar a presença portuguesa.

Existe neste momento uma renovação historiográfica quanto a África (por exemplo na obra de Isabel Castro Henriques, com destaque, entre outros trabalhos, para o seu livro Percursos da modernidade em Angola e em especial para a sua Introdução em que se faz o ponto da situação sobre a visão dos africanos em Portugal). Num momento em que a historiografia vem reavaliando a presença portuguesa em África é necessário que o uso do manual contemple, de igual modo, uma reavaliação das caracteríticas dessa presença. Em muitos locais de África a colonização portuguesa foi, durante muito tempo e até muito tarde, meramente pontual. As características próprias de Portugal, a sua demografia, os seus meios, impuseram a busca de soluções que permitissem uma presença ao longo de regiões vastas e difíceis. A grandeza de África impôs, por isso mesmo, uma capacidade especial de relacionamento, um conhecimento das populações (interesse de que já João de Barros dá prova nas suas Décadas da Ásia). Minimizando África minimizamo-nos a nós próprios. Esquecendo-a, esquecemos uma parte de nós.

Se a leitura dos manuais é de alguma maneira, e dificilmente poderia ser de outro modo, um pouco eurocêntrica existe a necessidade de promover continuamente o conhecimento e a problematização.

A minha experiência de docência em Moçambique permitiu-me encarar com os alunos e colegas a necessidade de muitas vezes questionar realidades e conceitos que usualmente parecem aquiridos sem a menor dúvida. Por exemplo o conceito de “descobrimento” e “descoberta” que para os moçambicanos não é encarado da mesma forma como o entendemos em Portugal. Os manuais moçambicanos reflectem essa outra visão.

(MOSTRAR MANUAIS MOÇAMBICANOS)

Nas nossas salas de aula, não basta a enumeração, pura e simples, de uma série de conceitos a apreender. É necessário e desejável que cada conceito seja o resultado de uma construção possibilitada pelo recurso aos materiais constantes do manual (textos, gravuras, entre outros) e ainda mercê do recurso a outros materiais de apoio ao ensino de que o docente pode dispôr ou criar.

Aqui não quereriamos deixar de referir as potencialidades do computador e da Internet que, não constituindo panaceia milagrosa para o ensino das temáticas africanas - como de resto não constituem, por si sós, para o estudo de qualquer outra temática - possibilitam, apesar de tudo, o acesso a muitos materiais informativos e iconográficos para os países africanos, nomeadamente para as antigas colónias portuguesas.

Salientemos o facto de alguns manuais escolares serem hoje vendidos com acompanhamento de disquettes para uso de professores e alunos - ainda que de valor e utilidade desigual.


4. A ideia de injustiça.

Nos manuais escolares procede-se frequentemente ao que podemos chamar a “teorização da injustiça”. Aspectos como colonialismo, escravatura, violência colonial são apresentados, referenciados ou descritos, muito justamente, com toda a carga negativa que lhes está subjacente.

A consciencialização das consequências negativas que a dominação colonial produziu em África constitui um dos aspectos fundamentais tendo em vista a criação de gerações de jovens mais esclarecidos e dispostos a evitar aspectos nefastos que o passado nos mostra. Mas não basta instituir uma teorização da injustiça. É necessário, sobretudo, acentuar através da prática/da experiência simulada - especialmente no ensino básico a partir do concreto (por exemplo através de exercícios de grupo, dramatizando e assumindo as posições respectivas de colonizados/colonizadores; o aluno, ao assumir cada um destes papéis experimenta de forma mais eficaz as dificuldades e resistências do Outro).

Os movimentos contemporâneos de xenofobia evidenciam a necessidade de uma educação para o conhecimento e combate ao racismo, descriminação e escravatura, nas suas diversas formas.


5. As ideias de dominação colonial e imperialismo.

A apreensão da ideia de dominação colonial e imperialismo não se faz unicamente - como é opção de muitos manuais - pelo simples inventário e enumeração de países colonizadores e regiões colonizadas, acrescidos de alguns dados económicos. A importância do factor humano e das raízes e relações entre colonizadores/colonizados é um aspecto fundamental para a compreensão das relações criadas entre uns e outros. Uma relação complexa e multifacetada.

Já na análise ao Terceiro Mundo e seus problemas arruma-se numa alusão de uma ou duas frases o problema do neocolonialismo não desbravando sequer a sua especificidade nos territórios africanos e, em particular, nos antigos territórios de influência portuguesa.

6. A presença africana no nosso País.

O tema de África é tanto mais importante quanto é cada vez mais evidente a presença africana em Portugal. Essa presença manifesta-se através de uma pluralidade de aspectos. Desde logo humana ela comporta contribuições africanas, de africanos, nos campos alimentar, artesanal, documental, na música, na própria toponímia.

O elemento africano em Portugal é, desde há séculos, muito importante. Tal é o caso de Tomar que no século XVI tem uma comunidade negra tão numerosa que justifica a criação de uma Confraria de Nossa Senhora do Rosário, invocação que é sempre dos pretos. Estes negros escravos do Convento de uma cidade interior e rural como Tomar diluem-se no conjunto da população, miscigenando-se. Mesmo neste caso, a história regional mostra-nos que a presença dos africanos no nosso País tem um percurso histórico que nem sempre se tenta clarificar ou valorizar.

Aqui se lembra que de entre os nossos alunos, um pouco por todo o lado e em maior ou menor grau, encontramos jovens portugueses com origens africanas; e reconhecemos africanos que, ao longo do tempo, se fundiram na população portuguesa (especialmente pelo cruzamento com as camadas mais baixas, como assinala José Ramos Tinhorão no seu livros Os Negros em Portugal, uma presença silenciosa.) Actualmente, a toponímia deixa transparecer, ainda que ao de leve, essa presença preta, mulata, mestiça.


7. Aconsideração da história africana.

Contrariamente ao que por vezes é transmitido, os africanos têm uma história própria, sem o contacto com o mundo europeu ou apesar dele. Uma história nada homogénea, bastante rica e articulada com a Ásia. Nessa história figuram, com as suas especificidades, as instituições, o comércio, a cultura, e uma economia próspera, entre outros aspectos.

África tem uma intensa história política, uma panóplia de movimentações humanas, de conflitos característicos de uma dinâmica própria. Essa dinâmica não merece nos livros escolares de História, a maior parte das vezes, uma única menção.

Nos manuais existe uma tendência clara para reduzir África e os africanos a meros sujeitos passivos no contacto/confronto com os europeus, espécie de tábua-rasa apta a receber as marcas impressas por estes. Mesmo religiões como o islamismo e o cristianismo de génese extra-africana e carácter universalista ganham, neste continente, novos contornos, inovadoras formas culturais como o animismo e todo o conjunto de crenças e costumes bantus, variáveis consoante a região abordada, aliás à semelhança do que acontece com qualquer outra actividade oriunda do exterior.

(MOSTRAR ACETATOS DE MANUAIS PORTUGUESES)

8. Nós e os outros.

O ser humano enriquece-se com a pluralidade e visões diferentes do Mundo e estas representam um contributo inestimável para o conhecimento da realidade. Tal se passa com os próprios historiadores. Por exemplo no caso de Moçambique, é frequente que os historiadores portugueses recorram a termos como presença e contacto; enquanto que os moçambicanos acentuam o colonialismo e a resistência; e estrangeiros (como Newitt, Illife, Perrier entre outros) prefiram para qualificar os portugueses epítetos como exploradores ou fracos. Tratam-se de visões diferentes mas, muitas vezes, complementares.

A África a que se referem os manuais é, normalmente, a nossa África. São os PALOPs. Mas, ainda falta um continente por descobrir... Não pretendemos propriamente, propor que se complete esta tarefa mas, ainda assim, importa transmitir esta ideia.

9. A ideia de África.

A ideia que nos é dada de África é normalmente estereotipada. A África que é apresentada nos manuais é quase sempre - pouco civilizada, monolítica, pobre. Fica ainda reservada a omissão ou uma espécie de estatuto de exterioridade ao norte de África (que nos chegou a vencer), ou mesmo ao Egipto como se fossem regiões estranhas ao continente africano.

Contudo, a África dos Descobrimentos Portugueses não é apenas recolecção, primitivismo; é também comércio, contacto, religião, luta, mineração, navegação, etc.. A grande diferença é essencialmente do domínio da tecnologia, particularmente da tecnologia bélica. África é, por isso mesmo, um continente dominado mas não conformado.

A propalada atracção de África será mesmo, como a pretendem tantas vezes resumir, a aventura? Qual o lugar nessa atracção do prazer, da liberdade e mesmo da riqueza?

Outra ideia que por vezes se insinua é a de que África só recebeu, "não nos dá nada". Esquecendo-se os seus contributos em domínios diversos - hábitos de higiene, música, estética, flora e fauna, práticas alimentares.

O problema reside na ausência de reciprocidade. A valorização do continente africano não equivale - como por vezes se julga - a denegrir a nossa história, mas antes a valorizá-la.

Finalmente, África aparece tipicamente representada, nos nossos dias, com a força dos media e especialmente da televisão, como a trilogia da morte - “fomes, pestes, guerra”. Esquece-se, muito frequentemente, tudo o que pode ser valorizado.

11. O exemplo das línguas.

Se no domínio da língua os manuais acentuam frequentemente a existência de palavras do Oriente que passam a integrar o vocabulário português, muito raramente isso é feito com vocábulos oriundos de África.

Mas também é verdadeiro o caso inverso de palavras portuguesas que são integradas em línguas locais de diversas regiões africanas em que se estabeleceu o contacto com os portugueses.

Além do mais, também do ponto de vista linguístico África representa diversidade e riqueza. Uma realidade ainda hoje, infelizmente, ignorada.

12. Um Tratamento desigual.

Do ponto de vista dos manuais escolares África representa, essencialmente, expansão. Aqui, o continente africano é zona intermédia a caminho do Oriente - o grande objectivo final. Os contactos sumários com os africanos e a experiência neles recolhida pelos europeus merece apenas breves referências. A relevância que é dada à expansão contrasta com a guerra colonial que não merece idêntico destaque.

No entanto é essencial que seja feita a ligação entre estes dois aspectos para que os nossos alunos entendam melhor o nosso passado recente alertando também para o paralelismo do processo, ainda que de forma diferente, com os outros povos colonizadores. Estabelecendo analogias com a própria dominação espanhola do território português.

13. África é um assunto em aberto.

Por outro lado, é errado pensar que o assunto África está encerrado. Como se não bastásse, temos no nosso país muitos cidadãos africanos; temos, por outro lado, muitos cidadãos portugueses em África. A globalização impõe, cada vez mais, este assunto na Europa.

14. História, cidadania e manuais escolares.

O conceito de cidadania é hoje muito mais complexo e não apenas um mundo a “preto e branco” do Estado Novo. Hoje é um universo heterogéneo dotado de novos valores.

Não pretendendo esquecer a necessidade de cumprir os programas, e sabendo da necessidade que o docente tem de considerar a realização de exames pelos seus alunos não podemos enjeitar as possibilidades de melhorar os conteúdos programáticos e de considerar os manuais escolares como preciosos auxiliares no processo de ensino (e por isso mesmo objecto de cuidadosa e criteriosa recolha nos momentos adequados) não esquecendo ainda, contudo, que a linguagem neles utilizada não é, obviamente, absolutamente neutral e que existem possibilidades de os melhorar e complementar sempre que necessário.

Os materiais extra-manual (casos do recurso ao vídeo que nos parece essencial para o tópico “África”, da gravura, da música, da imprensa ou das memórias da guerra colonial recolhidas junto das famílias dos alunos) devem proporcionar um equilíbrio ponderado, que melhore certos aspectos que o manual não trate de forma eficaz ou corrija algumas pequenas lacunas que nos parecem mais comuns nos livros escolares de História quando tratam de temáticas africanas, por exemplo: serem, por vezes, demasiado sintéticos e esquemáticos; outras vezes, omissos; ou ainda estimulando pouco a reflexão (como me parece exemplar no caso do conteúdo “guerras coloniais” e, finalmente, correndo o risco de abordar demasiado superficialmente certos temas fundantes para a compreensão do percurso histórico português.

15. Finalmente, e se não existissem já razões importantes para o estudo de África, terminamos com a consideração, aparentemente consensual e para a qual se vêm encontrando provas de que: O Homem, veio de África, é africano. Só nos resta honrar a nossa própria origem.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

"Simão Preto, sécs. XVI-XVII (? Tomar - 1613 Chaul)", Casimiro Rodrigues

Simão Preto, sécs. XVI-XVII (? Tomar – 1613 Chaul )



por Casimiro Jorge Simões Rodrigues



Simão Preto morreu na cidade de Chaul a 19 de Abril de 1613.

Doente, a 11 dos mesmos mês e ano em que abandonaria o mundo dos vivos pressente a chegada da morte. Planifica então, cuidadosamente, a partida. (Testamento de Simão Preto, Arquivo municipal da Misericórdia de Tomar.)

Na cama em que jazia doente, elabora o seu testamento. Declara encontrar-se de perfeito juízo. Prepara-se. Não sabe a hora em que Deus o chamará para perto de si. Mas sente-a próxima. E se a morte é inevitável, porque não aceitá-la, em aliança?

Fora um homem de ambos os séculos.

O século XVI em que viveu e, por excelência, um tempo de viagens. Tempo desse mesmo espírito que persistiria na centúria seguinte. Quando o então moribundo haveria de embarcar, na felicidade da consciência, rumo à final viagem. Numa contínua peregrinação. Romaria espiritual. Igualmente comercial.

Simão Preto foi um viajante. O seu testamento, conservado na Misericórdia da vila de Tomar, de onde é natural, consiste no roteiro da sua última viagem. Nascera da união por legítimo matrimónio de Pedro Fernandes e de Maria Fernandes, a preta. Inventário de sinais registados pela sua importância. Das marcas que ficaram. Como marcos.

No seu documento final, começa por encomendar a alma a Deus, que o criou do nada. E é a sua fé Naquele que o remiu com o seu precioso sangue que lhe acalenta a esperança de Salvação.

Na hora da morte não tinha já pai nem mãe, filho ou filha, assim como nenhum outro herdeiro forçado a quem devesse, por lei, a obrigação de entregar os bens que amealhara durante uma existência que se imagina plena.

Agora que Nosso Senhor o levava para junto de si, determinava como sua última morada terrena a capela mor da Madre de Deus dos Capuchos da cidade de Chaul local onde desejava que padre guardião o enterrasse como irmão da Casa. Para tanto, rogava do dito padre a concessão do hábito - efeito para que deixava cinquenta pardaus -, acrescentando que, para além do mais, dispunha de uma bula apropriada que atestava a sua condição.

Também naquela qualidade de irmão da referida Casa, deixava aos religiosos que para sempre o deveriam acolher, cento e cinquenta pardaus. Pede que no mesmo mosteiro sejam por ele ditas cem missas.

Morrer. Mas espectacularmente. De forma socialmente adequada. Sair dos outros acompanhado por eles. Mesmo na morte, ou sobretudo nela, importa não estar só. Pelo que o número dos acompanhantes não é irrelevante. Como o não é a estatura moral. Dele e deles. A sua religiosidade. A sua fé.

Pede ainda, por amor de Deus, aos Senhor Provedor e irmãos da Santa Casa da Misericórdia que, munidos da sua bandeira, acompanhem o corpo na derradeira viagem. E é para que o sigam até à tumba que lhes deixa duzentos pardaus de esmola.

Ainda à mesma Misericórdia de Chaul resta o pedido e encargo de ficar-lhe como testamenteira. A ela competirá a arrecadação da sua “fazenda” mandando-a, por letra, a Portugal, tarefa pela qual paga oitocentos pardaus.

Pedia também ao padre vigário e demais padres beneficiados da Sé Matriz que quisessem, com a sua cruz, acompanhar aquele corpo até à sepultura pelo que deixava, em esmola, cinquenta pardaus. Oferece a dádiva acostumada para que lhe digam seis ofícios e cinquenta missas no altar do Santíssimo Sacramento a que se deverão juntar outras cinquenta repartidas por outros altares. Ficam mais cinco pardaus de esmola ao padre vigário de S. Sebastião para que o acompanhe com a sua cruz.

Um cruzado é o que cabe a cada um dos padres extravagantes que acompanharem o seu corpo. Quarenta pardaus para os padres de S. Domingos que o quiserem acompanhar à sepultura, esperando que fosse cumprido o seu pedido para que, no dito mosteiro, se dissessem cem missas com a esmola costumeira. O mesmo quantitativo era entregue ao padre guardião de S. Francisco e outros religiosos que o quisessem acompanhar e satisfazer o requisito que consistia em cumprir cem missas rezadas no seu mosteiro. Idêntico pedido, na mesma forma, é feito ao Padre Prior de Nossa Senhora da Graça e demais padres que o acompanhar quisessem, com idêntica obrigação de cem missas em seu mosteiro, cinquenta no altar de S. Nicolau e as outras repartidas pelos diversos altares existentes, acompanhadas da esmola acostumada.

Um testamento é um contrato. Antecipação de morte. O seu responsável primeiro preocupa-se com a vida que espera para depois do falecimento. Os que o lerem, por vezes muitos anos depois, esperam encontrar antes os traços da tal outra vida que existiu previamente àquela morte. E que vidas terá experimentado Simão Preto! Sobretudo para lá do que ficou registado nestes papéis finais. Que percurso foi o da sua elevação económica e social. Que experiências! Viagens. Culturas. Exotismos...

Mas a circunstância de se esperar o afastamento último do mundo dos vivos não significa que desapareça a preocupação com os que ficam. Os que se conheceram. Os que participaram, muitas vezes sem o suspeitar, na construção do “eu” que fomos nós. Assim, o dotador expressa a vontade de, entre os seus mais pobres parentes de Portugal - não sem antes, claro, exercer a prévia e segura precaução de confirmar parentescos - sejam repartidos mil e quinhentos pardaus, querendo que este dinheiro vá com o mais que a Misericórdia há-de tomar e cuja repartição e administração está a cargo desta Casa como sua legítima e institucional testamenteira.

Morrer é, de igual modo, reviver nos que permanecem e ficam. É renascer-lhes nas almas ainda presas de vida terrena. Nas suas memórias. E a memória é tanto mais perene quanto o permitirem “os cabedais”. A morte aparentemente igualitária será, dessa forma, vencida ainda uma outra vez e de uma outra maneira. Não permitirá o dinheiro que, neste caso, e com o soçobrar do corpo, seja igualitáriamente arrumada a recordação desta nova alma na “prateleira” dos anónimos defuntos. Dos que povoaram a terra desde o seu começo, sem pretensão de nome que perdurásse. A alma liberta-se de um corpo que foi conhecido, viveu, triunfou. E acumulou.

Juntou o suficiente para que essa memória seja também de algum modo, monumental. Na freguesia de Sª Mª do Olival manda que se faça uma capela, administrada pela Misericórdia de Tomar, para a qual deixa mil cruzados.

Uma vez cumpridos todos os seus legados, ordena que do remanescente de seu fato sejam, por sua expressa vontade, enviados por letra para Portugal e para a Santa Misericórdia de Tomar, os mil pardaus que estipulou, com o amor e brevidade que puder ser.

Depois de cumpridas todas as obrigações financeiras inerentes aos desejos que agora expressa, quer que se faça ou merque uma capela das que estão feitas em Santa Maria do Olival, e que se ordene com seus ornamentos, lâmpada, castiçais, galhetas e tribolo, tudo de prata, pedindo ao provedor da Misericórdia que encarregue da mesma capela o seu parente mais chegado. Este deverá assegurar, por sua vez, que é dita uma missa em cada dia pela sua alma e pela dos seus defuntos e, não havendo parente seu, deverão o provedor e irmãos apresentar um capelão suficiente que lhes prazer, pagando-lhe duzentos mil reais em cada ano. Com o que sobrar deste rendimento deverão casar orfãs que sejam parentes do defunto previsível e, caso as não haja, que se proceda à repartição do quantitativo pelos pobres da sua terra. E ao padre António Fernandes serão dados sessenta patacões, continua estipulando o documento.

Feliz o que morre assegurando algo para os seus. Mesmo que os não conheça. Que seja abençoado até ao dia da sua própria morte e mesmo para além dela. Honra para a família que tão bem sucedido e cumpridor filho criou para, por sua vez, dela poder, um dia, cuidar.

Outros ainda lembrarão o falecido. Por lhe lembrarem a ele. Apenas. Nesta hora derradeira recorda-se o que agora assim finda, de uma moça casta e china, por nome Filipa, que deixa forra e a quem entrega a esmola de cinquenta pardaus para o seu casamento, mandando que não bulam com o seu caixão nem com o seu fato, nem lhe busquem seu caixão, por o ter bem servido. A uma outra moça Ana Casta que bem o serviu, deixa-a também forra juntando-lhe o alívio de vinte pardaus em esmola para o seu casamento, mandando igualmente que não bulam com o seu caixão nem com o seu fato, nem busquem o seu caixão por o ter bem servido. Forrava ainda outra moça, Francisca Casta Buquy deixando-lhe de esmola, a ela e a seu marido, Francisco Machado, vinte pardaus.

Companhias da vida. Cativas. Preciosas. Protegidas. Não por serem poderosas ou especialmente lucrativas. Apenas por terem sido essas tão importantes quanto simples... companhias.

No seu testamento, Simão Preto deixa expressas muitas outras informações. Sobretudo dando conta de dinheiros que lhe são devidos. Bastante impressionantes os quantitativos. Entre eles aparecem dívidas de poderosos. Soberanos. Dignidades locais. Um desfilar de contabilidades que representam balanços de contas do prestígio de um homem que ganhou. Até onde um homem pode ganhar.

Outros tomarenses experimentaram destinos diferentes numa diáspora semelhante. Por exemplo na guerra. Tal é o caso de Fernão Jácome, de Tomar, que se encontra entre a milícia que deverá defender a fortaleza de S. Miguel, de que é alcaide-mor, em Socotorá (João de Barros, Décadas da Ásia, Década I, Livro I, Capítulo IV, p.23.). Ou o da armada de catorze velas capitaneada por Tristão da Cunha e na qual andou, entre outros nobres, Afonso Lopes da Costa, filho de Pedro da Costa. (Existe o documento do testamento de Pedro da Costa no Arquivo municipal da Misericórdia de Tomar.), também de Tomar (João de Barros, Ob. cit., Década I, Livro I, Capítulo I, p.4.). Nesses navios navegou o dito Afonso da Costa desde a partida de Lisboa a um domingo de Ramos, 6 de Março de 1506 até vir encontrar a comum e trágica morte no mar - sem testamento, portanto - no ano de 1510, durante um violento temporal, perto de Goa (João de Barros, Ob. cit., Década II, Livro V, capítulo VIII, p. 226).

Afinal, a história de Simão Preto, não sendo uma história vulgar, é a de um dos muitos homens que nesta época viajou e experimentou. Preciosas são as informações do documento que testemunha a sua vida, redigido pouco antes do momento de abalar. Não só pelo que ele nos diz mas, de igual modo, pelo que o autor viveu e lá não estará. Demandou o longínquo Oriente. Triunfou em vida e amealhou o suficiente para, à sua maneira, da própria morte triunfar.

Testemunho pessoal de um homem do mundo. Mas também o de muitos outros que, anónimos, deixaram o seu testamento invisivelmente inscrito na imensa crónica colectiva dos séculos das viagens impossíveis.